Conversando com Cindy (talking to Cindy)

Conversando com Cindy

“Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente.” Camille Claudel

A obra de Rachel Korman ocupa um lugar no campo da arte contemporânea que, a princípio, poderíamos chamar de feminista ou feminino. Porém, não é somente porque use da fotografia do corpo da mulher que sua arte é feminista e, sim, porque empresta significado ao corpo feminino dentro da geografia da arte. As Guerrilla Girls perguntam se uma artista precisa tirar a roupa para ter sua obra comprada por um museu, uma vez que só 3% das pinturas e esculturas em museus são de mulheres, mas 83% das imagens de nus são femininas.

Rachel Korman faz da prática da fotografia sua arena de discussão quando usa, em algumas séries, sua própria imagem e, noutras, o corpo de artistas que utilizam a figura da mulher, como em Conversando com Cindy. Esta conversa (com Cindy Sherman) dá-se na forma de diálogo aberto, pois se refere tanto à artista auto-retratada, quanto à cena em que a imagem é captada. Cindy observa e é observada por outros personagens anônimos mas não alheios ao poder e ao magnetismo que brotam das imagens. O espectador mira-se neste exemplo ambíguo do olhar e ser olhado.

Numa outra série, Rachel Korman exibe sua própria imagem enquanto mulher-artista, musa de todas as representações na história da arte ocidental. Este corpo-musa mostra-se fragmentado, esquartejado, dividido em metades, tal qual uma figura magritiana ou uma surrealista mulher-gavetas. A artista questiona nesta obra os limites da existência humana, no caso a feminina. Exibe-se como metáfora da maneira pela qual são vistas as mulheres - retalhadas, classificadas, em gavetas, escaninhos, armários, etc..., assim como a arte que praticam.
Em mais uma série, a artista recupera imagens de mulheres anônimas ou usa auto-retratos em sépia, na forma das fotografias encontradas em objetos de louça de cemitérios. Estas peças-jóias são lembranças das milhares de anônimas que enchem os espaços da história em busca de recuperação de suas vidas.

A representação da mulher obedece ao cânone do ideal no campo da história da arte. As Pietás, Madonas, Vênus, Musas, sempre pareceram imateriais, míticas, sacras, nunca figuras carnais. Após o Renascimento, as mulheres ocuparam o lugar de nobres, rainhas, donas-de-casa burguesas, cortesãs ou bailarinas, algumas amantes, esposas, mães, filhas retratadas como ideal inalcançável da beleza. A mulher teve que se contentar com o papel de musa, vendo-se representada como um ideal, faltando-lhe carne, sangue e veias. Mesmo a carnalidade feminina inventada pelos românticos Ingres e Goya ainda pairava como mera representação de um corpo que obedecesse aos desejos masculinos.

Poucos exemplos no passado apresentam a mulher com o desejo de possuir a carne. Não por acaso são mulheres retratadas por mulheres, como Lavinia Fontana e Sofonisba Anguinossola (Ester e Judith), Camille Claudel (Danaede) e mais um ou outro nome. É somente na arte contemporânea que a psiquê e a carne juntam-se num mesmo corpo, revelado pelos olhos, mentes e mãos femininas. Os traumas em Louise Bourgeois. A desconstrução do corpo em Juddy Chicago. A afirmação deste em Marina Abramovic. A espiritual em Eva Hesse. A paródia dos mitos femininos em Cindy Sherman. O mito primitivo em Ana Mendieta. Foi, enfim, nas vertentes e dobras da arte feminina , que a mulher pôde inserir sua verdadeira imagem, como mulher e criadora.

Rachel Korman junta-se a elas em busca de sua identidade como mulher-artista, criadora e criatura, pois lhe interessam as inúmeras facetas que um corpo-alma possa desenvolver. Para além de conversar com Cindy, a artista conversa com todas as outras criadoras que a ajudam nesta busca pelo seu eu criador.


Paulo Reis
Lisboa, março de 2007.